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Convite ao estudo
Caro aluno,
Bem-vindo à nossa terceira unidade! Você está pronto para conhecer um outro lado das respostas imunológicas?
Na última unidade, você aprendeu as bases das respostas de defesa contra os diferentes microrganismos e viu que o sistema imune possui mecanismos distintos para enfrentar desafios que não são uniformes. Agora, veremos como o nosso sistema de defesa se comporta frente a antígenos não infecciosos e que ele é capaz de causar dano tecidual e ser, ele próprio, a causa de doenças graves.
A capacidade de diferenciar o que é próprio do não próprio, ou seja, o que faz ou não parte do organismo, é uma importante característica da resposta imune adaptativa e das células que a compõem. Essa distinção é importante para evitar o ataque imunológico a tecidos e a órgãos do nosso organismo. A tolerância ao próprio é mantida por mecanismos rígidos, que garantem a homeostasia do corpo. Quando acontecem falhas nessa tolerância, surgem as doenças autoimunes. Doenças também podem surgir de falhas em mecanismos inatos ou adquiridos da resposta, pois predispõem o indivíduo a infecções oportunistas. A esses quadros dá-se o nome de imunodeficiências.
São chamadas de hipersensibilidades as repostas imunes que acontecem de maneira exacerbada e que podem resultar em danos locais ou sistêmicos no organismo. Apesar de todo o controle para que não haja responsividade ao próprio, o aparecimento de tumores não deve estimular uma resposta de defesa capaz de controlar o crescimento de células malignas. Todos esses quadros serão abordados nesta unidade.
Para que você compreenda um assunto tão importante para o seu futuro profissional, nesta unidade você estudará as bases da tolerância imunológica a antígenos próprios e como fatores ambientais e genéticos contribuem para a quebra dessa tolerância levando à autoimunidade. Verá ainda que disfunções e falhas em componentes das respostas inata ou adquirida resultam nas imunodeficiências. Em seguida, conhecerá as hipersensibilidades, situações autoimunes ou não, nas quais o sistema imune responde de maneira anormal ao alvo em questão. Por fim, descobrirá como o sistema ultrapassa a tolerância do próprio para responder a tumores que surgem no organismo.
Mais uma vez convido-o a estudarmos juntos para ampliarmos nossos conhecimentos!
Praticar para aprender
Até aqui vimos como o sistema imunológico responde a uma enorme variedade de patógenos. A inflamação inata, os perfis de resposta adaptativa e tantos outros mecanismos aptos a eliminar uma infecção que pode ser danosa para o organismo. Mas você já parou para pensar que existem algumas situações em que uma resposta inflamatória poderia ser prejudicial e que, portanto, não deveria acontecer? Lembre-se, por exemplo, de que temos inúmeros microrganismos vivendo nas nossas mucosas aérea, genital, epitelial e intestinal com os quais nosso sistema de defesa deve coexistir, muitas vezes em simbiose. O sistema imune de uma mulher grávida é outro exemplo, visto que deve aceitar a presença do feto, cuja metade dos antígenos expressos são herdados do pai e, por isso, estranhos à mãe.
Os mesmos mecanismos que atuam para a não responsividade inflamatória nesses casos também garantem que o sistema imune não responda a antígenos que fazem parte do organismo. A esse fenômeno damos o nome de tolerância imunológica; falhas em seus mecanismos geram as chamadas doenças autoimunes. Devido a sua importância, nesta unidade estudaremos as bases da tolerância imunológica e os defeitos que resultam da autoimunidade.
Por muito tempo defeitos herdados ou adquiridos em componentes do sistema imune, coletivamente chamados de imunodeficiências, eram considerados quadros opostos àqueles observados nas autoimunidades. Hoje, à luz das novas descobertas sobre o funcionamento das células imunes, percebeu-se que são como lados opostos da mesma moeda, com inúmeros fatores em comum. Por isso, as imunodeficiências serão também incluídas nesta seção.
conceito-chave
Para contextualizar sua aprendizagem, suponha que você, já formado, acabou de passar para o programa de mestrado em Imunologia Clínica. Ao chegar no laboratório onde irá desenvolver sua tese, sua orientadora sugeriu que conversasse com os demais alunos para conhecer melhor as linhas de pesquisa desenvolvidas ali. O primeiro aluno com quem conversou foi João, responsável por um projeto relacionado à autoimunidade. João contou que a retirada do timo de camundongos com três dias de vida induzia a um quadro de gastrite autoimune quando esses animais se tornavam adultos. De acordo com as descobertas dele, a doença era resultado de um desbalanceamento entre o número células T efetoras e o número de células T reguladoras. João então perguntou se você saberia dizer qual era a relação entre o timo e as células T reguladoras. O que você diria a ele?
Nesta seção você conhecerá uma outra faceta das respostas imunológicas. Boa sorte nesta nova parte do caminho que iniciou lá atrás! Estude, tire as dúvidas com o professor e aproveite esta jornada!
Ainda na primeira unidade, ao revisarmos as características da resposta adaptativa, vimos que, mesmo sendo capaz de atuar contra uma variedade enorme de microrganismos, ela não reagia a antígenos próprios do indivíduo. Em situações normais, essa não responsividade inflamatória ou tolerância imunológica, como é conhecida, é mantida apesar de o evento molecular responsável pela geração dos receptores adaptativos (TCRs e BCRs) não excluir a possibilidade de que linfócitos autorreativos sejam criados. Além disso, tal como vimos anteriormente, as moléculas de MHC apresentam tanto antígenos estranhos quanto antígenos próprios. Ou seja, os antígenos teciduais são constantemente mostrados aos linfócitos T. A não ativação inflamatória dessas células frente a esses antígenos é assegurada por vários mecanismos que garantem a tolerância imunológica. Quando algum desses mecanismos falha, o sistema imune do indivíduo ataca as próprias células e tecidos, resultando nas doenças autoimunes. Para entender como elas surgem, primeiro vamos aprender como a tolerância ao próprio é mantida.
Os mecanismos responsáveis pela tolerância imunológica podem ser divididos em centrais, que acontecem nos órgãos linfoides primários – sítios de maturação dos linfócitos –, e periféricos, presentes nos linfonodos e em outros tecidos. O timo é o local onde os linfócitos T são maturados e, portanto, é ali que ocorre a indução da tolerância central para essas células.
Após a formação do seu TCR, os linfócitos T passam por dois processos seletivos. A seleção positiva serve para testar se o TCR recém-formado é funcional e capaz de reconhecer a molécula de MHC própria. É também nesse momento que o linfócito se diferencia em CD4+ ou CD8+ dependendo se seu TCR foi capaz de reconhecer o MHC de classe II ou de classe I. Aqueles cujo TCR não é funcional sofrem apoptose. Em seguida, ocorre a seleção negativa. Esse processo depende da apresentação de vários antígenos próprios de tecidos periféricos expressos pelas células epiteliais tímicas que, graças à proteína AIRE (autoimmune regulator), conseguem transcrever os genes desses antígenos. Os linfócitos TCD4+ ou TCD8+, os quais reconhecem com alta afinidade quaisquer dessas moléculas, não terminam sua maturação e morrem por apoptose. Um caminho alternativo para os linfócitos TCD4+ autorreativos é a sua diferenciação em células T reguladoras, das quais falaremos adiante. Ao fim, é gerado um repertório de linfócitos T, restrito ao MHC próprio e tolerante aos antígenos que fazem parte do organismo.
No entanto, a tolerância central é imperfeita, e, mesmo em indivíduos saudáveis, alguns clones autorreativos acabam escapando para a periferia. Por isso, mecanismos de tolerância periférica se fazem necessários e são justamente induzidos quando células T maduras reconhecem antígenos próprios fora do timo. Esse reconhecimento, sem a adequada coestimulação por parte das APCs, pode resultar na anergia dos linfócitos, na sua morte ou em uma suscetibilidade maior à ação das células T reguladoras.
A anergia refere-se a um estado em que os linfócitos T permanecem vivos, porém funcionalmente irresponsivos após o reconhecimento dos antígenos. Há dois mecanismos envolvidos na anergia dessas células. O primeiro está relacionado a uma sinalização anormal pelo complexo TCR, a qual culmina na degradação de moléculas que seriam os segundos mensageiros da via de sinalização iniciada pelo complexo. O segundo mecanismo se baseia em sinais inibidores, iniciados por outros receptores que não o complexo TCR.
Exemplificando
A indução de anergia nos linfócitos T está relacionada ao balanço entre sinais ativadores e inibidores provenientes das moléculas coestimuladoras CD28 e CTLA-4. Ambas reconhecem o mesmo alvo nas células apresentadoras de antígeno (APCs): as moléculas B7.
Enquanto a ligação entre a CD28 e a B7 induz a ativação do linfócito T, a ligação entre a CTLA-4 e a B7 bloqueia esta última e a remove da superfície da APC, reduzindo a chance de o linfócito ser ativado por ela.
Normalmente, durante o contato entre o linfócito T e a APC, ocorre uma competição entre a CD28 e a CTLA-4 pela ligação com s moléculas B7. Como a CTLA-4 tem uma afinidade maior com o alvo, acaba ganhando a competição e o linfócito não é ativado. No entanto, citocinas inflamatórias estimulam o aumento na expressão de moléculas B7, de modo que, no momento da interação com o linfócito T, sobram moléculas livres para se ligar à CD28.
A anergia acontece na ausência de um ambiente inflamado, em que a APC, com baixa expressão de B7, apresenta um antígeno próprio ao linfócito T. Neste cenário, a sinalização via CTLA-4 predomina e o linfócito sai disfuncional desse encontro e com a expressão ainda mais elevada de CTLA-4 em sua superfície, o que torna praticamente impossível sua ativação em outro momento.
Um outro destino possível para os linfócitos T autorreativos é a morte por apoptose. Durante uma resposta imune normal, o reconhecimento de um antígeno ativa a produção de proteínas pró-apoptóticas nos linfócitos T. A ação dessas proteínas é contrabalanceada pela ação de outras moléculas antiapoptóticas induzidas pela coestimulação do linfócito e por fatores de crescimento produzidos durante a resposta imunológica. Quando um antígeno próprio é reconhecido e não há sinais inflamatórios para induzir a geração das moléculas antiapoptóticas, o linfócito sofre apoptose.
Reflita
Você percebeu que, nas duas situações, o que fez um linfócito ficar anérgico ou sofrer apoptose foi a ausência de um ambiente inflamado no momento do reconhecimento do antígeno próprio? O que você acha que poderia acontecer se antígenos próprios fossem apresentados em um contexto inflamatório?
O terceiro mecanismo que visa garantir a tolerância periférica é a ação dos linfócitos T reguladores. A supressão da resposta por essas células é baseada em diversos mecanismos, entre eles a produção de citocinas, tais como a IL-10 e o TGFβ, que inibem a ativação de linfócitos, células dendríticas e macrófagos. Essas células reguladoras também expressam CTLA-4, a molécula que, tal como dito anteriormente, bloqueia e remove as moléculas B7 da superfície das APCs, dificultando a ativação de outros linfócitos. Por fim, os linfócitos T reguladores, em virtude da alta expressão do receptor para IL-2, ligam-se a essa citocina, que é essencial para a proliferação dos linfócitos T efetores, e consomem-na, diminuindo sua disponibilidade durante a resposta imune.
Polissacarídeos, lipídeos e ácidos nucléicos próprios são antígenos T-independentes que não são reconhecidos por linfócitos T, mas o são por linfócitos B. Portanto, essas células também devem passar por mecanismos de tolerância central e periférica para garantir que não sejam gerados autoanticorpos. A maturação dos linfócitos B acontece na medula óssea e é ali que são testadas quanto a reatividade de seus receptores. Caso um linfócito B imaturo reconheça com alta afinidade algum antígeno próprio, ele passa por outro evento de recombinação de DNA a fim de gerar um novo receptor. Esse processo é chamado de “edição do receptor”, e falhas nessa nova tentativa fazem com que ou o linfócito morra por apoptose ou se torne anérgico. A anergia, aliás, é também um mecanismo de tolerância periférica observado nessas células. Linfócitos B que reconhecem proteínas próprias, mas não recebem sinais ativadores vindos dos linfócitos T auxiliares, tornam-se incapazes de responder a esse antígeno.
Assimile
Existe uma via de indução da tolerância imunológica adicional ao processo central e periférico: a tolerância oral. Esse fenômeno refere-se ao estado de baixa reatividade imunológica sistêmica e específica a um determinado antígeno após a administração dele por via oral. Essa tolerância não é programada nas linhagens germinativas, mas é adquirida durante a maturação do sistema imunológico pelos mesmos mecanismos de tolerância periférica já citados: a deleção de linfócitos reativos, a anergia clonal e a supressão ativa por células T reguladoras. É justamente a tolerância oral que impede o desenvolvimento de uma resposta imune inflamatória contra os antígenos que compõem os alimentos.
Se existem tantos mecanismos para garantir a não reatividade ao próprio, como surgem as doenças autoimunes? Para começar a responder essa pergunta é preciso saber que as doenças autoimunes variam bastante quanto ao órgão que afetam e quanto às suas manifestações clínicas, sendo algumas limitadas a determinados tecidos e outras sistêmicas ou disseminadas. Apesar dessas diferenças, acredita-se que todas as doenças autoimunes passam pelas mesmas fases sequenciais de iniciação, propagação e resolução. As duas primeiras estão associadas a falhas nos mecanismos reguladores. Já a última é definida pela parcial e, na maioria dos casos, breve habilidade do sistema de restaurar o balanço entre as respostas efetora e reguladora. Essa característica faz com que sejam doenças crônicas, porém não lineares, em que pacientes apresentam períodos de maior ou de menor autorreatividade.
Como os indivíduos que sofrem com doenças autoimunes desenvolvem sintomas muito tempo após o início das reações imunes anormais, é difícil apontar os fatores responsáveis pelo seu surgimento, embora se acredite que sejam resultado da combinação de fatores genéticos e ambientais.
Inúmeros polimorfismos genéticos já foram associados às doenças autoimunes, sendo a maioria localizada em regiões reguladoras de genes cujos produtos participam das respostas imunes. Um exemplo é visto no gene para o receptor de IL-23 (IL23R), sendo a IL-23 uma citocina que aumenta a capacidade pró-inflamatória das células Th17. Polimorfismos no gene desse receptor foram descritos em diversas doenças autoimunes cuja fisiopatologia foi associada a uma resposta Th17 desregulada, como a espondilite anquilosante. Essa doença afeta os tecidos conjuntivos, caracterizando-se pela inflamação das articulações da coluna, que pode resultar na fusão entre as vértebras. Alguns alelos de HLA, especialmente o HLA-DR e o HLA-DQ, apresentam uma forte associação com o desenvolvimento de várias doenças autoimunes. A forma exata com que contribuem para seu surgimento ainda não está completamente esclarecido, mas é possível que sejam mais eficientes na apresentação de antígenos próprios do que outros alelos. O risco de desenvolver espondilite anquilosante é de 90 a 100 vezes maior em indivíduos que expressam o HLA-B27 do que aqueles que não o expressam. Indivíduos com o HLA_DRB1*0301 apresentam um risco 35 vezes maior de desenvolver diabetes mellitus tipo I e aqueles que expressam o HLA-DRB1*01/*04 ou *10 apresentam um risco 12 vezes maior de apresentar artrite reumatoide. É importante ressaltar que, apesar desses e de outros tantos polimorfismos aumentarem o risco para o desenvolvimento de uma doença autoimune, eles não são, por si só, a causa da doença.
Contudo, existem desordens autoimunes raras que resultam de mutações em genes específicos. Mutações de perda de função no gene da proteína AIRE causam uma doença chamada de Síndrome Poliendócrina Autoimune (APECED), caracterizada por uma combinação de candidíase mucocutânea crônica, hipoparatiroidismo e insuficiência suprarrenal autoimune. Nos indivíduos com essa mutação, há uma falha na tolerância central, e diversos antígenos periféricos deixam de ser apresentados no timo, facilitando o escape de linfócitos T autorreativos, que, na periferia, atacam diversos tecidos, especialmente os órgãos endócrinos. Outro exemplo é a mutação no gene para o fator de transcrição FoxP3, necessário para o desenvolvimento e para a função das células T reguladoras. A doença conhecida pelo acrônimo IPEX, de síndrome de desregulação imune, poliendocrinopatia e enteropatia ligada ao X, está relacionada a falhas na tolerância periférica e cursa com enteropatia com perda de proteína, dermatite eczematosa e poliendocrinopatias, sendo fatal em pacientes sem tratamento apropriado.
Diferentes fatores ambientais já foram associados ao desenvolvimento de doenças autoimunes, mas as infecções parecem ter um papel de destaque. É postulado que a infecção em um tecido induz uma resposta imune inata, a qual aumenta a produção de moléculas coestimuladoras e citocinas pró-inflamatórias pelas APCs, conferindo o ambiente inflamado que favorece, em indivíduos com predisposição às doenças autoimunes, a ativação de clones de linfócitos autorreativos.
A produção excessiva de IFN tipo I, citocinas características da resposta antiviral, é associada a várias doenças autoimunes como o lúpus, por exemplo. Alguns patógenos produzem peptídeos antigênicos muito similares a antígenos próprios, um fenômeno conhecido como mimetismo antigênico. O reconhecimento cruzado desses antígenos próprios por anticorpos pode ocasionar um quadro de autoimunidade.
Na febre reumática, anticorpos gerados contra bactérias do gênero Streptococcus reconhecem como estranhos antígenos do miocárdio, levando a uma doença cardíaca. A resposta inata à infecção pode alterar a estrutura química de alguns antígenos próprios, tal como é observado nas infecções bacterianas periodontais. A inflamação contra essas bactérias leva à conversão enzimática da arginina em citrulina, presentes em proteínas próprias, que passam a ser reconhecidas como estranhas pelo sistema imune, ocasionando quadros de artrite reumatoide.
Alguns antígenos, como os encontrados no olho ou nos testículos, ficam escondidos do sistema imune e são ignorados por ele. O dano tecidual causado por infecções ou traumas mecânicos podem favorecer a liberação desses antígenos, os quais podem deflagrar uma resposta autoimune contra o tecido que os produz.
Há alguns anos, a microbiota vem ganhando importância na manutenção (ou na perda) da tolerância imunológica. Já foi demonstrado que a maioria das manifestações clínicas da doença intestinal inflamatória é causada por reações antimicrobianas. Mudanças na microbiota já foram associadas ao desenvolvimento de diabetes mellitus tipo I em modelos animais. A proteção contra doenças autoimunes também parece ser influenciada pela microbiota. A infecção de camundongos germ-free (camundongos sem qualquer microbiota) com Bacteroides fragilis os protegeu do desenvolvimento de esclerose múltipla experimental. Esse ainda é um campo novo, que pode levar ao desenvolvimento de estratégias para combater as doenças autoimunes.
Outro fator ambiental que também pode ser associado ao desenvolvimento de autoimunidade é a radiação UV, especialmente em casos de lúpus cutâneo. Uma possível explicação é que essa radiação induz a apoptose de vários tipos celulares, aumentando a exposição de antígenos nucleares, principalmente se os restos celulares não forem eficientemente removidos dos tecidos. Já foi sugerido que um nível pequeno de morte celular é necessário para manter a tolerância periférica a antígenos próprios. Logo, indivíduos com predisposição genética podem ser incapazes de manter a tolerância na presença de uma exposição contínua de radiação UV.
Independentemente da causa (ou causas) da ativação inicial da doença autoimune, é na fase de propagação que os sintomas clínicos aparecem. A natureza autoperpetuante dessas doenças é reflexo do fato de que os antígenos que a deflagram não podem ser eliminados do organismo. Isso leva a uma inflamação crônica, com progressiva lesão tecidual que, por sua vez, pode gerar novos epítopos antigênicos. Cria-se assim um ciclo inflamatório vicioso que parece favorecer um desbalanço entre o número de células efetoras e células reguladoras no organismo. Mas, como dito anteriormente, a maioria das doenças autoimunes não apresentam progressão linear. Os episódios de crise inflamatória são intermediados por períodos de controle da resposta. Esse fato sugere que os pacientes que sofrem com tais doenças têm mecanismos tolerogênicos funcionais, ainda que insuficientes para acabar de vez com a inflamação autoimune.
As doenças autoimunes não têm cura. Os tratamentos são paliativos, baseados principalmente na administração de corticoides, que visam controlar a inflamação. Vários tratamentos experimentais vêm sendo testados, entre eles a terapia gênica para o caso de doenças causadas por mutações únicas, como o IPEX e o APECED, além do tratamento probiótico, especialmente nos casos de doenças inflamatórias intestinais. A utilização de anticorpos monoclonais contra receptores de citocinas inflamatórias também tem se mostrado uma boa opção de tratamento. O Ustekisumab, por exemplo, é usado em pacientes com doença intestinal inflamatória e psoríase. Ele bloqueia a subunidade p40, presente nos receptores para IL-12 e IL-23, citocinas indutoras dos perfis inflamatórios Th1 e Th17, respectivamente.
Se, por um lado, o sistema imune pode perder a tolerância ao próprio e causar dano tecidual, por outro, defeitos em seus componentes podem também causar doenças, as chamadas imunodeficiências. Caso resultem de anormalidades genéticas em células ou proteínas participantes das respostas, são classificadas como imunodeficiência congênita ou primária. Já as imunodeficiências adquiridas ou secundárias são consequência de infecções, déficit nutricional ou tratamentos que causam perda ou disfunção em componentes imunes.
Mutações em mais de 300 genes diferentes já foram identificados como causas de imunodeficiências primárias e, como esperado, a maioria é expresso em células imunes. Em relação à genética desses quadros, alguns pontos merecem ser destacados. O primeiro é que as mutações ligadas ao cromossomo X são mais frequentes do que as autossômicas, fazendo com que homens sejam mais afetados do que mulheres. O segundo ponto é que, dependendo do efeito da mutação gênica, quadros aparentemente opostos podem surgir.
Vamos usar como exemplo os genes das enzimas RAG1 e RAG2, responsáveis pelo rearranjo gênico que leva à formação dos TCRs e dos BCRs durante a maturação dos linfócitos. A mutação de perda de função em um desses genes resulta na doença chamada de Imunodeficiência Severa Combinada (SCID), da qual falaremos mais adiante. Já mutações hipomórficas em um desses genes leva à Síndrome de Omenn, que apresenta um caráter autoimune. De fato, acredita-se que há uma alta sobreposição dos fatores genéticos associados às imunodeficiências e às autoimunidades, o que faz a autorreatividade, uma característica frequente em várias imunodeficiências primárias. Por fim, mutações em alguns genes contribuem para a suscetibilidade a determinados tipos de patógenos. É o caso das mutações que afetam o gene para o receptor toll 3 (TLR3), que predispõe os pacientes a casos mais graves de infecção viral, como a encefalite por vírus do herpes simples.
Podemos dividir as imunodeficiências primárias quanto ao mecanismo inato ou adaptativo que afetam. Anormalidades no funcionamento de fagócitos e de componentes do sistema complemento são importantes causas de imunodeficiências ligadas à imunidade inata. Na Doença Granulomatosa Crônica (DGC) mutações nos genes das subunidades formadoras da enzima NADPH oxidase reduzem a capacidade microbicida de neutrófilos e macrófagos. Os pacientes ficam ainda mais suscetíveis a doenças fúngicas, como aspergilose e candidíase, além de infecções por bactérias produtoras de catalase, uma enzima que inativa peróxido de hidrogênio, uma fonte alternativa de radicais livres que poderia ser usada por esses leucócitos na eliminação de patógenos.
Nesse quadro, o sistema imune tenta compensar o defeito ativando ainda mais linfócitos T que, por sua vez, estimulam a migração de macrófagos para sítio de infecção, formando uma estrutura parecida com o granuloma. A forma mais comum de DGC é a ligada a mutações no cromossomo X. Já a deficiência em C3, por exemplo, componente comum a todas as vias de ativação do sistema complemento, leva a infecções severas e pode ser fatal.
Em relação aos defeitos associados a mecanismos adaptativos, podemos ainda subdividi-los naqueles ligados ao processo de maturação dos linfócitos e naqueles relacionados à ativação e ao funcionamento dessas células.
A Imunodeficiência Severa Combinada (SCID) é uma desordem multifatorial que se manifesta como defeito tanto de linfócitos B quanto de T. Na maioria dos casos de SCID ligada ao X, os pacientes apresentam mutações no gene para a cadeia gama (γc), que forma o receptor para várias citocinas, tais como IL-2, IL-4, IL-7, IL-9, IL-15 e IL-21. Sem essa cadeia, os linfócitos T e B são incapazes de reconhecer o sinal dado por quaisquer dessas citocinas. A IL-7 é importante na maturação de linfócitos T; na sua ausência, ocorre um bloqueio no desenvolvimento dessas células, ocasionando defeitos no braço celular da resposta adaptativa e na ausência de auxílio para que o braço humoral funcione corretamente. Existem ainda mutações autossômicas ligadas ao desenvolvimento de SCID em humanos, como mutações no gene da enzima Janus Kinase 3, envolvida na sinalização iniciada pelos receptores para as citocinas mencionadas. O único tratamento curativo nesses casos é o transplante de medula óssea.
Na Síndrome de DiGeorge, também chamada de Síndrome do 22q11, uma deleção no cromossomo 22 interfere no desenvolvimento do timo, ocasionando defeitos na maturação de linfócitos T. Uma deficiência ligada especificamente ao linfócito B é chamada de Agamaglobulinemia ligada ao cromossomo X (ALX). Ela é causada por mutações no gene para a enzima tirosino quinase de Bruton expressa durante a maturação desses linfócitos e necessária para sua sobrevivência, proliferação e maturação. Aqui, novamente, podemos notar a associação entre um quadro de imunodeficiência e a autoimunidade. Cerca de um quarto dos pacientes que sofre com essa doença também desenvolve doenças autoimunes, em especial artrite e doença intestinal crônica.
Defeitos na ativação ou na função dos linfócitos também levam a imunodeficiências de importância clínica. Na Síndrome da Hiper-IgM ligada ao X, mutações no gene para a molécula CD40L em linfócitos T auxiliares impedem que essas células exerçam seu papel na resposta imune. Como consequência, a resposta de células B contra antígenos T-dependentes é prejudicada. A imunidade humoral nesses pacientes cursa com pouca troca de isotipo e nenhuma maturação por afinidade. Há também problemas na ativação de macrófagos, neutrófilos e células dendríticas. Meninos afetados com essa mutação têm suscetibilidade aumentada para infecções por Pneumocystis jiroveci, fungo que sobrevive dentro de macrófagos que não recebem o auxílio de T. Existe ainda a forma autossômica (recessiva) da Síndrome da Hiper-IgM, relacionada a mutações no gene para a proteína CD40. Deficiências na produção de alguns isotipos de imunoglobulinas também são bastante comuns, dentre elas podemos destacar a deficiência de IgA. Mutações no gene da pesada desse anticorpo resultam em quadros assintomáticos ou em predisposição para infecções leves nas mucosas aérea ou intestinal na minoria dos pacientes. Finalmente, na Síndrome do Linfócito Nu, mutações em fatores de transcrição, que induzem a expressão de MHC de classe II, diminuem a produção dessas moléculas e resultam em números muito baixos de linfócitos T CD4+ no sangue periférico.
Muitas deficiências no sistema imune normalmente são adquiridas ao longo da vida do indivíduo, sendo, portanto, classificadas como imunodeficiências secundárias. A causa mais frequente de imunodeficiência secundária no mundo é a infecção por HIV, embora o tratamento de câncer com quimioterápicos ou radiação e a má nutrição também sejam bastante relacionados a quadros como esse.
Dando destaque à causa mais comum, o HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) é um retrovírus que infecta células do sistema imune, especialmente linfócitos T CD4+, causando uma destruição progressiva nessas células. O curso clínico da infecção por HIV segue algumas fases que podem culminar na doença Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (SIDA – ou AIDS, sigla em inglês). Logo após a infecção, no período de viremia inicial, o paciente pode passar pela Síndrome Retroviral Aguda (SRA), caracterizada por febre, cefaleia, astenia, adenopatia, faringite, exantema e mialgia. Após alguns dias, é comum a evolução para a fase de latência clínica, durante a qual a ocorrência e a resposta às infecções são semelhantes às da população imunocompetente. Eventualmente, pacientes que não recebem a terapia antirretroviral apresentam queda no número de linfócitos T CD4+. Quando os números dessas células ficam abaixo de 200 células/mm3, os pacientes são diagnosticados como portadores da AIDS, que cursa com infecções oportunistas, alguns tipos de tumores, perda de peso e até demência.
Terminamos aqui mais uma seção. Agora é hora de praticar o que você aprendeu! Respire fundo e boa sorte!
Faça a valer a pena
Questão 1
Como definimos tolerância? Tolerância pode ser definida como não responsividade controlada. Gosto do exemplo da pessoa irritante que ocasionalmente se senta ao seu lado durante palestras. Ela pode estar mascando goma, sussurrando, usando seu telefone celular, roncando — seja o que for, ela perturba e desvia sua atenção. Você tem um lápis muito apontado em sua mão e passa pela sua mente espetá-lo na sua carne, ganhar sua atenção e dizer-lhe para se comportar! Você poderia fazê-lo facilmente — mas se abstém; por ser uma pessoa tolerante. Similarmente, tolerância imunológica é a incapacidade controlada de responder a si próprio, apesar de ter a capacidade de o fazer.
São mecanismos mantenedores da tolerância imunológica periférica:
Correto!
A letra b e a letra d estão incorretas pois o processo de tolerância periférica visa eliminar os clones autorreativos, não ativá-los. A letra c traz exemplos de mecanismos centrais de indução de tolerância imunológica. A letra e erra ao não incluir a ação de células T reguladoras como um dos mecanismos periféricos.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
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Questão 2
“O fato de haver vários mecanismos diferentes, por meio dos quais a tolerância imunológica pode operar, leva a uma conclusão óbvia: diversos processos patológicos diferentes podem quebrar a tolerância e conduzir à autoimunidade.” (PEAKMAN e VERGANI, 2012, p121.).
Em relação aos fatores que desencadeiam as doenças autoimunes, julgue as afirmativas a seguir como verdadeiras (V) ou falsas (F).
( ) A maioria das desordens autoimunes resultam de mutações em genes específicos.
( ) Polimorfismos nos genes HLA são responsáveis diretos pelo desenvolvimento de inúmeras doenças autoimunes.
( ) As infecções são associadas ao desenvolvimento de doenças autoimunes por vários motivos, entre eles, por estimular um ambiente inflamatório que propicia a coestimulação de clones autorreativos.
( ) Fatores ambientais, como a radiação UV, estão associados ao desenvolvimento de doenças autoimunes mesmo em indivíduos sem predisposição genética.
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
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Correto!
A primeira afirmativa está incorreta, pois a minoria das desordens autoimunes resulta de mutações em genes específicos. A segunda afirmativa está incorreta, pois polimorfismos nos genes HLA são associados à predisposição para o desenvolvimento de inúmeras doenças autoimunes, porém não são responsáveis diretos por causá-las. A última alternativa está incorreta, pois a radiação UV é um fator ambiental associada ao desenvolvimento de doenças autoimunes em indivíduos com predisposição genética.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Questão 3
Se, por um lado, o sistema imune pode perder a tolerância ao próprio e causar dano tecidual, por outro, defeitos em seus componentes podem também causar doenças, as chamadas imunodeficiências.
- A Síndrome da Hiper-IgM ligada ao X, causada por mutações no gene para a molécula CD40L em linfócitos T auxiliares, é um exemplo de imunodeficiência primária relacionada a defeitos na ativação ou na função dos linfócitos.
PORQUE
- II. Apesar de ser um defeito relacionado ao linfócito T, na Síndrome da Hiper-IgM ligada ao X, apenas a reposta adaptativa humoral é defeituosa.
A respeito dessas asserções, assinale a alternativa correta.
Tente novamente...
Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.
Tente novamente...
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Correto!
Na Síndrome da Hiper-IgM ligada ao X, mutações no gene para a molécula CD40L em linfócitos T auxiliares impedem que essas células exerçam seu papel na resposta imune. Como consequência, a resposta de células B contra antígenos T-dependentes é prejudicada. A imunidade humoral nesses pacientes cursa com pouca troca de isotipo e nenhuma maturação por afinidade. Há também problemas na ativação de macrófagos, neutrófilos e células dendríticas. Portanto, a asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.
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Referências
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