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Imunologia de mucosas e sítios imunoprivilegiados

Ana Carolina Terra Mercadante

Fonte: Shutterstock.

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Convite ao estudo

Ao longo das unidades anteriores, discutimos como o sistema imune lida com os desafios que tiram o organismo de seu estado homeostático. Vimos também que desregulações nesse sistema podem, por si só, causar doenças graves e incuráveis. No entanto, existem situações especiais que requererão do sistema imunológico adaptações especiais ou o farão entrar em contato com antígenos estranhos os quais deve tolerar. Você, provavelmente, já ouviu falar de transplante de órgãos, transfusão sanguínea ou microbiota intestinal. Todos esses termos estão relacionados às tais situações especiais que dependerão de respostas adequadas.
Devido à importância clínica dessas “respostas imunes especiais” iniciaremos esta unidade abordando as especializações apresentadas pelo sistema de defesa nas mucosas gastrointestinais, respiratória e geniturinária, além daquelas observadas no tecido cutâneo e nos ditos sítios imunoprivilegiados. Em seguida, trataremos dos fatores determinantes no aceite e na rejeição de transplantes seja de órgãos, seja de medula óssea. Por fim, estudaremos as bases da imuno-hematologia ao discutir a relação entre o sistema imune e os antígenos eritrocitários e como isso influencia nas transfusões de sangue entre indivíduos. 

Praticar para aprender

Até aqui aprendemos sobre os mecanismos inatos e adaptativos comuns a diversas localizações anatômicas do nosso corpo. No entanto, certas regiões apresentam particularidades que fizeram o sistema imunológico desenvolver respostas especializadas a fim de manter o equilíbrio entre responder contra o que é patogênico e tolerar o que traz benefícios. Para entender essa situação dicotômica, nesta unidade estudaremos a resposta imune nas barreiras epiteliais, dando ênfase a como as respostas imunes acontecem nas mucosas gastrointestinal, aérea, geniturinária e no tecido cutâneo, além de conhecer as manifestações cutâneas das afecções do tecido conjuntivo. Por fim, conheceremos os sítios imunoprivilegiados, locais onde as respostas imunológicas tendem a ser mais tolerantes do que inflamatórias.
Para contextualizar sua aprendizagem, suponha que você, já formado, acabou de passar para o programa de residência em Hematologia e Histocompatibilidade de um importante hospital de transplantes. No seu primeiro ano, você e seus colegas de turma percorrerão os diferentes laboratórios do hospital para, então, escolher um onde permanecerão o restante do programa. 
O primeiro laboratório determinado para vocês conhecerem é o de transplante de fezes. Ao chegar no local, vocês conheceram Bruno, o responsável pelo setor. Ele explicou que o objetivo do laboratório é preparar as fezes coletadas de um doador saudável para, então, serem transferidas para um receptor. Bruno esclareceu, ainda, que esse procedimento era realizado em pacientes que apresentavam um desequilíbrio na flora intestinal, normalmente causado por bactérias Clostridium difficile e nos quais o uso de antibióticos não foi suficiente para controlar a infecção. Apesar da explicação, seus colegas não entendiam como a transferência de fezes entre os indivíduos ajudaria pacientes com infecções intestinais graves. Você conseguiria explicar a eles o motivo?
Pronto para iniciar a etapa final de sua jornada? Então, vamos lá e bons estudos!

conceito-chave

Diferente do que vimos para vários tecidos do nosso corpo, o sistema imunológico precisou desenvolver especializações naqueles que compõem as barreiras epiteliais. Tais especializações são essenciais não apenas para a proteção contra os inúmeros patógenos que são mais comumente encontrados ali, mas também devem assegurar que vivamos em harmonia com os microrganismos comensais residentes nas superfícies epiteliais e no lúmen das mucosas. O conjunto de células e moléculas imunes presentes nesses sítios especializados é chamado de sistema imune regional e abrange o sistema imune das mucosas gastrointestinal, broncopulmonar, geniturinário e do tecido cutâneo. 
Os sistemas imunes das diferentes barreiras epiteliais compartilham certas semelhanças, como a presença de uma camada epitelial externa, que previne a invasão microbiana de um tecido conectivo subjacente constituído por vários tipos de células imunes aptas a responder a microrganismos comensais ou patogênicos que atravessam o epitélio, e de estruturas linfoides em que a reposta adaptativa é iniciada. No entanto, como refletem as necessidades do tecido onde se encontram, apresentam também inúmeras diferenças. Por isso, veremos cada sistema imune regional separadamente.

Imunidade no sistema gastrointestinal

O trato gastrointestinal apresenta como característica principal o fato de ser a maior superfície do corpo humano exposta ao ambiente externo, com uma área que varia de 200 a 300 m². A maior parte do trato gastrointestinal é o intestino propriamente, que pode ser dividido em intestino delgado e intestino grosso. As principais funções desse órgão são a digestão e a absorção do alimento a fim de obter energia para o organismo. Assim, para atender a essa demanda e, ao mesmo tempo, preservar sua integridade, um elaborado sistema de células altamente especializadas, que inclui neurônios, células endócrinas e parácrinas, células musculares e imunes, são encontradas distribuídas nas quatro principais camadas que compõem a estrutura básica desse tecido: a serosa, a muscular, a submucosa e a mucosa.
Ao longo do tubo intestinal, encontra-se ainda um tecido linfoide associado conhecido como GALT (Gut Associated Lynphoid Tissues). Esse tecido consiste não só em linfócitos difusos por todo o epitélio e na lâmina própria, mas também em aglomerados de células imunes organizadas, como as placas de Peyer e os linfonodos mesentéricos. As placas de Peyer são agregados linfoides macroscópicos não encapsulados encontrados na submucosa do intestino delgado. São formados principalmente por folículos de células B entremeados por áreas de células T. A área linfoide é separada do lúmen intestinal por uma camada única de células intestinais modificadas, as quais formam o epitélio associado ao folículo. As células mais notáveis presentes ali são as células M, que funcionam como uma espécie de corredor de passagem, sendo responsáveis pela captação de antígenos do lúmen intestinal e por posterior entrega nas placas de Peyer, via transporte vesicular transepitelial. Assim, esses antígenos podem ser apresentados pelas APCs aos linfócitos encontrados no interior das placas.
Os linfonodos mesentéricos são os responsáveis pela drenagem da linfa no intestino. O acúmulo de linfócitos nesse local requer tanto a L-selectina quanto a integrina ɑ4β7, moléculas de adesão que direcionam a entrada de linfócitos nos tecidos periférico e mucoso, respectivamente. Esse fato faz dos linfonodos mesentéricos a via de ligação entre a circulação periférica e a circulação da mucosa.
Os mamíferos apresentam eucariotos, archeobactérias, eubactérias e vírus colonizando suas superfícies epiteliais e formando uma intricada rede de comunidades de microrganismos nesses locais. É no intestino, porém, que se encontra o maior reservatório de microrganismos, chegando a um total de 1014 células. Destes, uma densidade de 1012 células por mililitro de conteúdo luminal são bactérias que se localizam principalmente na região terminal do intestino delgado e no cólon. A presença de microrganismos no intestino não é apenas um fato, mas um fator extremamente importante para a vida, uma vez que sinais liberados pela microbiota promovem uma digestão ótima do alimento, mantêm a homeostasia epitelial, modulam o metabolismo lipídico, promovem a angiogênese e a função dos nervos entéricos, auxiliam na resistência a infecções e promovem o desenvolvimento normal e a regulação da homeostasia do sistema imunológico associado à mucosa. Por ser tão indispensável, mecanismos moleculares devem existir para facilitar o reconhecimento da microbiota comensal e para permitir um nível basal de ativação imunológica a fim de programar padrões de expressão gênica necessários para o desenvolvimento e para a função normal das células imunes. Ao mesmo tempo, entretanto, a mucosa intestinal e o sistema imunológico associado a ela devem estar aptos a responder, de modo rápido e eficiente, contra microrganismos patogênicos aos quais estão constantemente expostos. Nessa realidade dicotômica, é essencial saber distinguir ao que responder. Frente a isso, pode-se dizer que a mucosa intestinal se encontra em uma condição de paz armada, cujos pilares são as barreiras inata e adaptativa ali presentes (MERCADANTE, 2013). 
A proteção imune inata é mediada, em parte, pela barreira física e química provida pelo epitélio da mucosa intestinal. Vários tipos celulares compõem esse epitélio, dentre os quais destacam-se os enterócitos, também conhecidos como células colunares. Elas representam mais de 80% de todas as células intestinais e estão interligadas por junções oclusivas, formando uma verdadeira barreira epitelial que controla o transporte de nutrientes e de eletrólitos entre o lúmen intestinal e a lâmina própria, além de impedir a passagem de microrganismos entre as células dessa camada. A perda dessas junções resulta na interrupção do contato célula-célula e célula-matriz, que, em última instância, leva à perda da polarização do epitélio e induz a apoptose prematura das células. Em vista disso, componentes bacterianos que porventura interfiram no funcionamento normal dessas junções intercelulares tendem a enfraquecer a barreira e a aumentar sua permeabilidade.
As células caliciformes apresentam uma função protetora contra danos físicos e químicos do intestino, uma vez que são responsáveis pela produção e pela secreção de glicoproteínas de alto peso molecular, chamadas de mucinas. Existem tipos diferentes de mucina, mas elas têm em comum o fato de todas serem moléculas compostas por um esqueleto proteico ligado a cadeias laterais de oligossacarídeos higroscópicos e hidrofílicos, as quais formam uma matriz de gel que recobre todo o epitélio intestinal, formando uma barreira protetora semipermeável. As mucinas também podem interagir com polissacarídeos ou com proteínas da superfície celular de bactérias, mantendo-as presas nessa camada até que movimentos peristálticos normais do intestino as removam dali. A acessibilidade à superfície apical do epitélio intestinal e a ruptura dessa barreira química são capacidades inerentes a microrganismos patogênicos e são as principais diferenças que os distinguem dos simbiontes (MERCADANTE, 2013).
Por fim, encontramos, no interior das criptas intestinais, as células de Paneth, responsáveis por secretar grânulos que contêm proteínas microbicidas específicas, incluindo lisozimas e defensivas, responsáveis pela defesa contra patógenos. Essas moléculas possuem propriedades anfipáticas que as permitem se ligar às bactérias Gram-positivas ou Gram-negativas e levam à formação de poros nas paredes dessas bactérias.
O grande desafio da resposta inata na mucosa intestinal é discriminar entre o que é patogênico e o que é simbionte, apesar de haver inúmeras semelhanças bioquímicas entre eles. Os enterócitos, por estarem em contato constante com a comunidade microbiana, possuem um papel fundamental nessa distinção, promovendo o controle da densidade desses microrganismos e a indução de uma resposta inflamatória controlada quando necessário. Para tanto, essas células expressam os mesmos receptores de reconhecimento de padrão encontrados nas células imunes, com algumas particularidades que limitam o desencadeamento de uma inflamação patológica. 
A primeira diferença é em relação ao local onde esses receptores são expressos nos enterócitos. Os PRRs são expressos fora da região de contato com o lúmen e, preferencialmente, dentro das células ou na região basolateral, próximos às junções oclusivas formadas entre os enterócitos. Dessa forma, apenas os microrganismos que possuem uma capacidade invasiva maior são capazes de se ligar efetivamente aos receptores. Outra diferença é que a ligação entre receptores do tipo Toll e seus agonistas resultam, principalmente, no aumento das junções oclusivas, na motilidade intestinal e na proliferação dos enterócitos. Ou seja, estimulam a função de barreira e não o estabelecimento de um ambiente inflamatório, como visto nos tecidos periféricos. 
Além disso, quando o contato entre o enterócito e o microrganismo acontece e não há outros sinais de invasão, essas células são capazes de regular a homeostasia da mucosa, influenciando células dendríticas, macrófagos e linfócitos através da expressão local de citocinas imunorreguladoras, incluindo IL-10, TGF-β, prostaglandina E2, ácido retinóico e IL-25. No entanto, quando esse contato acontece concomitantemente a um dano no epitélio, neutrófilos são recrutados para o lado basal e translocados pelo epitélio. Uma vez no lúmen, exercem suas funções microbicidas. Durante esse processo, os enterócitos iniciam a ativação de vias intracelulares pró-inflamatórias, como a via de NF-κB (Nuclear Factor- κB), levando à expressão de inúmeras citocinas e quimiocinas pró-inflamatórias que coordenam a resposta inata em curso e modulam a resposta adaptativa ativada a seguir (MERCADANTE, 2013). 
A resposta imune adaptativa pode ser iniciada em qualquer estrutura do GALT, a depender da origem do antígeno que a iniciará. No caso das placas de Peyer, os antígenos são transportados do lúmen para a lâmina própria através das células M. Essas células não são capazes de processar os antígenos que endocitam, elas apenas os movem para dentro das placas onde são capturados e processados por células dendríticas locais para posterior apresentação aos linfócitos T. Um subtipo de célula dendrítica residente na lâmina própria é capaz de expressar proteínas da junção oclusiva que lhe permite estender seus dendrícitos entre as células do epitélio intestinal, sem romper ou perturbar a permeabilidade da barreira, e captar peptídeos diretamente da região do lúmen intestinal para também os apresentar aos linfócitos presentes ali. Já os linfonodos mesentéricos são responsáveis pela resposta contra antígenos vindos da linfa proveniente tanto do intestino delgado quanto do intestino grosso. 
As células dendríticas presentes nesses sítios possuem papel fundamental na resposta adaptativa local, pois além de ativar e de influenciar o perfil de respostas de linfócitos T e B, são capazes de estimular a expressão das moléculas de endereçamento α4β7 e CCR9 nos linfócitos efetores. Dessa forma, após a ativação, mesmo que os linfócitos caiam na circulação principal, voltam a se fixar no epitélio intestinal. A indução dessas moléculas de endereçamento depende da secreção de ácido retinoico pelas células dendríticas, embora o mecanismo não seja completamente explicado. 
O braço de resposta adaptativo mais proeminente no intestino é o humoral, baseado principalmente na produção de anticorpos do tipo IgA por linfócitos B locais. No intestino, a mudança de classe para IgA pode ocorrer tanto por mecanismos T-dependentes quanto por mecanismos T-independentes. Em ambos os casos, o estímulo para o linfócito B realizar a troca de isotipo para IgA provém de uma combinação de ligantes e citocinas, dentre as quais destaca-se o TGFβ produzido por células epiteliais do GALT e por células dendríticas, em resposta ao reconhecimento de bactérias comensais por receptores do tipo toll presentes nessas células.
Uma quantidade menor, porém significativa, de IgM e IgG também é produzida por linfócitos B locais e secretada no lúmen intestinal. O transporte dos anticorpos IgA e IgM do epitélio até o lúmen é mediado por um receptor unidirecional específico para a porção Fc desses anticorpos, o chamado Receptor Poli-Ig. Já o IgG é transportado bidireccionalmente pelo receptor de Ig neonatal (FcRn). Uma vez no lúmen, esses anticorpos contribuem para a neutralização de patógenos e toxinas.
O braço celular da resposta adaptativa é marcado por uma frequência de linfócitos TCD8+intraepiteliais e linfócitos do tipo γδ. Ambos os tipos de linfócitos apresentam uma diversidade de receptores limitada se comparado às populações periféricas. Já na lâmina própria, predominam os linfócitos T CD4+, os quais, em sua grande maioria, apresentam um fenótipo de células efetoras ativadas ou de memória. Os perfis de resposta apresentados por esses linfócitos são amplamente influenciados pela microflora bacteriana mesmo durante a homeostasia. Por exemplo, o Lactobacillus casei Shirota é capaz de induzir a diferenciação de células T para um fenótipo Th1 via a produção de IL-12 por macrófagos e células dendríticas. Já bactérias filamentosas segmentadas (SFB), que aderem à mucosa, induzem a diferenciação para o fenótipo Th17. Além disso, células dendríticas presentes na lâmina própria do intestino delgado expressam constitutivamente a subunidade p40 das citocinas IL-12 ou IL-23 envolvidas na diferenciação para Th1 e Th17 respectivamente, em resposta à fagocitose de microrganismos da flora intestinal normal. Esses dados reforçam a hipótese de que células Th1 e Th17 são necessárias para a eliminação de um pequeno número de microrganismos comensais que penetram a camada de células epiteliais da mucosa intestinal. Outra função-chave das células T presentes na mucosa intestinal é aumentar as funções microbicidas das células fagocíticas frente às infecções oportunistas de bactérias comensais. Outras evidências que mostram a importância da microbiota intestinal para as respostas imunes locais vêm da associação entre o desenvolvimento de doenças inflamatórias intestinais e a desregulação da flora normal. Além disso, pacientes que sofrem de infecção crônica por Clostridium difficile pós-antibioticoterapia se beneficiam com transplantes de fezes, que repopularizam o intestino com a flora de indivíduos saudáveis.
Na relação sistema imune versus microflora, as células T reguladoras são componentes essenciais para manter a já mencionada paz armada que vemos no intestino. Estima-se que existam duas vezes mais células reguladoras ali do que em tecidos periféricos. No intestino são encontrados diferentes subtipos de células T reguladoras: as células T reguladoras clássicas, Foxp3+, as Tr1 e as Th3. Elas diferem entre si quanto à forma e ao local onde são induzidas e também quanto à citocina anti-inflamatória que, preferencialmente, secretam, variando entre IL-10 e TGFβ. A expressão dessas citocinas reguladoras não é restrita às células reguladoras, mas a ocorrência de inflamação intestinal em sua ausência indica que essas células determinam o limite homeostático entre inflamação e não inflamação.
As barreiras naturais são extremamente importantes na defesa contra as bactérias extracelulares. A integridade epitelial impede a invasão tecidual, e o movimento mucociliar dificulta a aderência ao trato respiratório, além disso, o pH ácido do estômago elimina muitas bactérias que penetram o trato digestivo alto. Na saliva e nas secreções prostáticas existem moléculas microbicidas. 
Uma vez que consigam ultrapassar tais barreiras, outros mecanismos inatos assumem a resposta. Peptideoglicanos da parede celular de bactérias Gram-positivas e o LPS, das Gram-negativas, ativam a via alternativa do sistema complemento que, além induzir a lise da célula bacteriana pela formação do Complexo de Ataque à Membrana, ainda gera peptídeos que atuam como opsoninas e mediadores inflamatórios. Aqui, vale destacar o papel da proteína C reativa (PCR), uma proteína de fase aguda produzida pelo fígado. A PCR possui múltiplos efeitos, atuando como opsonina, ativadora do sistema complemento e indutora do Fator de Necrose Tumoral α (TNFα), citocina importante na fase inicial da resposta imune. 
A ativação de fagócitos, como neutrófilos e macrófagos, constitui outro mecanismo imprescindível na resposta contra esses micro-organismos. 

Assimile

A influência da microbiota intestinal nas respostas imunes não se limita apenas ao intestino, uma vez que produtos bacterianos são capazes de melhorar a ativação de neutrófilos e de células NK periféricos. Diversos estudos também já demonstraram que o desenvolvimento de doenças alérgicas, como a asma, e de algumas doenças autoimunes está ligado a variações na microflora durante a primeira infância, consequência da forma de nascimento (cesariana versus parto normal), da amamentação e do uso de antibióticos.

Imunidade na mucosa respiratória

A mucosa do sistema respiratório abrange as passagens nasais, nasofaringe, traqueia e árvore brônquica. A microflora associada a esse tecido é muito menos diversa do que a encontrada no intestino, mas aqui também o equilíbrio entre a hiporresponsividade inflamatória e a defesa contra infecções deve ser finamente controlado. Além disso, a inalação do ar expõe toda essa mucosa a uma grande quantidade de antígenos que variam desde moléculas inócuas até microrganismos patogênicos.
A resposta imune inata, presente nessa mucosa, também se baseia na presença de uma barreira celular formada pela justaposição das células que constituem o epitélio pseudoestratificado, que recobre todo o trato respiratório. Essas mesmas células são responsáveis pela produção de muco e de moléculas microbicidas como defensinas e catelicidinas. O movimento ciliar das células epiteliais auxilia, ainda, na expulsão dos antígenos que ficam presos na camada de muco.
A resposta inata, especificamente no alvéolo, inclui mecanismos ao mesmo tempo microbicidas e anti-inflamatórios, uma vez que a inflamação nesse local poderia prejudicar a troca gasosa. Um exemplo dessa relação dicotômica é a produção de proteínas surfactantes A (SP-A) e D (SP-D) secretadas nos espaços alveolares. Essas moléculas são da família das colectinas e atuam neutralizando microrganismos de diferentes tipos presentes no local. Ao mesmo tempo, são capazes de inibir a sinalização via receptores do tipo Toll, que induziria a produção de citocinas inflamatórias por macrófagos residentes.
  Os macrófagos alveolares representam a maioria das células livres encontradas nos alvéolos. Essas células apresentam uma menor capacidade fagocítica se comparadas a macrófagos periféricos, além de expressarem IL-10, óxido nítrico e TGFβ, moléculas que inibem a resposta por linfócitos T local.
A resposta imune adaptativa nas vias respiratórias também é dominada pela presença de IgA, embora respostas baseadas na produção de IgE aconteçam frequentemente e estão envolvidas no desencadeamento de doenças alérgicas respiratórias.
Os locais de ativação linfocitária incluem as tonsilas e as adenoides na nasofaringe e nos linfonodos mediastinos e naqueles adjacentes aos brônquios. Células dendríticas são capazes de captar antígenos no lúmen aéreo através da emissão de dendritos por entre as células epiteliais brônquicas e os apresenta aos linfócitos T nos linfonodos mencionados. O padrão de resposta dominante é o Th1, embora, em indivíduos atópicos, haja a prevalência do perfil Th2. 

Imunidade na mucosa geniturinária

Existem poucas especializações nas repostas inata e adaptativa observadas na mucosa geniturinária. A reposta inata se baseia, principalmente, na barreira epitelial formada pela justaposição das células que formam o epitélio estratificado escamoso da mucosa vaginal e da uretra terminal masculina, além da fina camada de muco produzido pelas células colunares presentes no trato genital superior feminino. Nessa mucosa também é encontrada uma grande diversidade de tipos de macrófagos e de células dendríticas que buscam manter uma relação de equilíbrio entre a flora local e a reposta inflamatória contra microrganismos patogênicos. Há também a presença de células T e B residentes. Diferente de outras mucosas, o isotipo de anticorpo que predomina no local é a IgG.

Imunidade no tecido cutâneo

A pele inclui duas principais camadas, a externa, chamada de epiderme, constituída principalmente por células epiteliais e, separadas por uma fina membrana basal, a camada mais interna ou derme, composta por tecido conectivo e por estruturas anexas, tais como os folículos pilosos e as glândulas sudoríferas. Entremeadas nessas duas camadas, há uma grande variedade de tipos celulares e seus produtos que, juntos, formam o sistema imune associado a esse tecido.

A epiderme forma uma barreira física que impede a invasão microbiana, uma vez que possui múltiplas camadas de epitélio escamoso estratificado, formadas por células epiteliais chamadas de queratinócitos. A camada basal de queratinócitos está em constante proliferação, de modo que as células filhas vão sofrendo maturação e formando camadas que se sobrepõem. Por fim, as células da camada mais externa sofrem apoptose e dão origem a uma barreira permeável rica em lipídeo e queratina, chamada de estrato córneo. Adicionalmente a essa barreira física, os queratinócitos também produzem moléculas microbicidas que incluem defensinas e catelecidinas, além de citocinas inflamatórias como TNFα, IL-1, IL-6, IL-18 e IL-33, quando estimulados por receptores padrão (TLRs e NLRs) que expressam. Alguns estímulos ambientais, como a radiação UV, também são potentes estimuladores para a produção dessas citocinas inflamatórias por parte dos queratinócitos, fato que pode explicar a resposta inflamatória à queimadura de sol.

Diversas subpopulações de células dendríticas estão envolvidas na iniciação da resposta adaptativa na pele, porém as células de Langerhans se destacam. Elas são caracterizadas pela expressão do receptor langerina e formam uma complexa rede de dendritos entre os queratinócitos. Uma vez que reconheçam PAMPs expressos por patógenos ou DAMPs expressos por células danificadas, são capazes de deixar a epiderme e migrar para os linfonodos locais, onde ativam os linfócitos T CD4+. A expressão de moléculas de endereçamento para pele nesses linfócitos, como CCR4, CCR8 e CCR10, também é influenciada por células dendríticas no momento da ativação e depende da radiação ultravioleta e da presença da vitamina D. Ainda na epiderme, a radiação UVB converte a molécula 7-dehidrocolesterol, formada na camada basal, em pré-vitamina D, que é, então, captada pelas células dendríticas locais. Essas células fazem a clivagem da pré-vitamina na sua forma ativa, a 1,25(OH)2D3, e, no momento da ativação dos linfócitos, a molécula é liberada e estimula expressão de CCR4, CCR8 e CCR10 pelas células T efetoras.
A grande maioria dos linfócitos T locais encontra-se na derme e apresenta fenótipo de células ativadas ou de memória. O perfil de diferenciação é variado, sendo encontrado tanto em células Th1 quanto em Th2, Th17 e em células reguladoras. Linfócitos T γδ também estão presentes.

Exemplificando 

O descontrole nas respostas imunológicas que acontece na pele pode gerar doenças como a psoríase, caracterizada por uma inflamação crônica e por um estímulo persistente para a proliferação de queratinócitos, ou como a dermatite atópica, que vimos na última unidade. No entanto, algumas doenças autoimunes do tecido conjuntivo apresentam manifestações cutâneas que variam desde lesões mais simples, como as rosáceas, observadas em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico, até a dermatomiosite, um quadro caracterizado por inflamação na pele e nos músculos estriados induzidos pela presença de autoanticorpos e linfócitos T citotóxicos. Em crianças, ainda pode surgir na forma de vasculite necrosante mediada por anticorpos. Outra manifestação bastante grave é a esclerodermia, uma doença autoimune que resulta no espessamento e no endurecimento da pele em decorrência de uma resposta inflamatória crônica contra o tecido conectivo localizado abaixo da pele e ao redor de órgãos internos e de vasos sanguíneos. A inflamação induz uma superprodução de colágenos tipo I e VI por fibroblastos locais, o que resulta na clínica associada a doença. A intensidade dos sintomas varia de acordo com as formas, localizada ou sistêmica, da esclerodermia.

Todas essas adaptações do sistema imunológico nas mucosas vêm justamente da necessidade de balancear uma reposta tolerante à microflora associada e uma resposta de defesa contra os microrganismos patogênicos que constantemente entram em contato com essas superfícies. Entretanto, existem determinadas regiões, tais como cérebro, olhos, placenta e testículos, em que a inflamação associada à resposta imune poderia resultar em uma disfunção letal de um órgão ou em falhas reprodutivas. Por causa disso, esses tecidos são chamados de sítios imunoprivilegiados uma vez que são protegidos da inflamação, como vista nos demais locais. 
Os mecanismos que fazem desses locais sítios de imunoprivilégio variam entre eles, porém alguns são similares aos mecanismos reguladores da inflamação vistos no intestino e na pele. No caso dos olhos, características anatômicas da câmara anterior contribuem para tal fim, pois ela é formada por uma camada de células justapostas, além de os vasos que irrigam o local serem resistentes à permeabilidade, o que dificulta a saída de células imunes do sangue para esse tecido. A córnea também é avascular, e a ausência de vasos linfáticos na câmara anterior limita o acesso de linfócitos para o local. Uma série de fatores solúveis com ação imunossupressora ou anti-inflamatória, como o TGFβ, é encontrada no humor aquoso que preenche essa câmara. Por fim, as células locais e do epitélio da íris expressam constitutivamente FasL e PD-L1, que, respectivamente, induzem à morte ou à inativação dos linfócitos T.
A não responsividade ao feto pelo sistema imune da mulher grávida também está relacionada ao fato da placenta e do próprio feto serem sítios de imunoprivilégio. No caso do feto, foi demonstrado que os trofoblastos fetais (camada mais externa do blastocisto responsável pela aderência do feto na parede uterina) não expressam moléculas de MHC de origem paterna, além de expressarem uma molécula de MHC classe I não polimórfica, a HLA-G, que protege os trofoblastos da lise induzida por células NK maternas. A tolerância materno-fetal também é intermediada por células T reguladoras produzidas pela mãe. Durante a gravidez, a frequência de células T reguladoras se eleva tanto sistemicamente quanto ao redor do feto.

reflita

Apesar de serem sítios de imunoprivilégio, tecidos como olhos, sistema nervoso central e útero podem ser infectados por microrganismos patogênicos. Você acha que nessas situações o sistema imune mantém suas propriedades anti-inflamatórias?

Terminamos aqui mais uma seção. Perceba quanto você já evoluiu, quanto conhecimento adquiriu! Portanto, continue praticando!

Faça valer a pena

Questão 1

O trato gatrointestinal é a maior superfície do corpo humano exposta ao ambiente externo, com uma área que varia de 200 a 300 m². Ali também é encontrado o maior número de microrganismos que compõem o microbioma humano, com aproximadamente 104  células microbianas. Essas características exigem do sistema imune associado a esse tecido especializações que garantam a tolerância aos microrganismos simbiontes e a defesa contra aqueles que são patogênicos.
Assinale a alternativa que corretamente elenca componentes do sistema imune associado à mucosa intestinal.

Tente novamente...

Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.

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Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.

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Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.

Tente novamente...

Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.

Correto!

A letra A está incorreta, pois as células de Langerhans estão preferencialmente localizadas na pele. A letra B está incorreta, pois a secreção de proteínas surfactantes é uma característica da mucosa respiratória. As letras C e D estão incorretas, pois a presença de uma camada epitelial externa formada por queratina e lipídeos é uma característica do tecido cutâneo, e os macrófagos alveolares são residentes do pulmão.

Questão 2

O sistema imunológico desenvolveu inúmeras especializações nos tecidos epiteliais, que servem como barreira para o meio externo ao corpo. Sobre essas especializações, avalie as afirmativas a seguir: 
I.  As células caliciformes do intestino apresentam uma função protetora contra danos físicos e químicos, uma vez que são responsáveis pela produção e pela secreção de glicoproteínas de alto peso molecular, chamadas de mucinas.
II.  Na relação do sistema imune com a microflora intestinal, as células T reguladoras são componentes secundários, sendo observada uma frequência extremamente baixa delas no intestino quando comparadas aos tecidos periféricos.
III.  A pele inclui duas principais camadas epiteliais formadas a partir da divisão de células chamadas de queratinócitos. Essas células, mesmo incapazes de produzir moléculas inflamatórias, auxiliam na defesa do organismo, pois formam uma barreira que impede a entrada de patógenos.
IV.  Os macrófagos alveolares representam a maioria das células livres encontradas nos alvéolos e são responsáveis pela expressão de IL-10, óxido nítrico e TGFβ, moléculas que inibem a resposta por linfócitos T local.
Considerando o contexto, assinale a alternativa correta.

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Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.

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Esta alternativa está incorreta, leia novamente a questão e reflita sobre o conteúdo para tentar outra vez.

Correto!

A afirmativa II está incorreta, pois as células T reguladoras são componentes essenciais para manter a homeostasia intestinal. Estima-se que existam duas vezes mais células reguladoras ali do que em tecidos periféricos. Já a afirmativa III está incorreta, pois os queratinócitos também produzem moléculas microbicidas que incluem defensinas e catelecidinas, além de citocinas inflamatórias, como TNFα, IL-1, IL-6, IL-18 e IL-33, quando estimulados por receptores padrão (TLRs e NLRs) que expressam. Alguns estímulos ambientais, como a radiação UV, também são potentes estimuladores para a produção dessas citocinas inflamatórias por parte dos queratinócitos, fato que pode explicar a resposta inflamatória à queimadura de sol.

Tente novamente...

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Questão 3

Olhos, testículos, cérebro, placenta e feto são coletivamente chamados de sítios de imunoprivilégio. Com base nos seus conhecimentos sobre esse tema, avalie as seguintes asserções e a relação proposta entre elas:
I.  Os sítios imunoprivilegiados são protegidos da resposta inflamatória pois ela poderia resultar em uma disfunção letal de um órgão ou em falhas reprodutivas. 
PORQUE
II.  Todos os mecanismos que garantem a hiporresponsividade inflamatória nos sítios imunoprivilegiados são específicos desses locais, não sendo observados nem nenhum outro tecido do corpo.
A respeito dessas asserções, assinale a alternativa correta.

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Correto!

Os mecanismos que fazem desses locais sítios de imunoprivilégio variam entre eles, porém alguns são similares aos mecanismos reguladores da inflamação vistos no intestino, na pele e em outros tecidos, como a presença de células T reguladoras e a expressão de moléculas que inativam ou induzem a morte de linfócitos T efetores. Logo, a asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.

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Referências

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BIO-RAD. The Mucosal Immune Response in Health and Disease. Bio-Rad, São Paulo, [s. d.]. Disponível em: https://bit.ly/3zeNIJd. Acesso em: 18 maio 2021.
FARIA, A. M. C. O intestino e o sistema imune. SBI, São Paulo, 29 abr. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3hQY244. Acesso em: 18 maio 2021.
KABASHIMA, K. et al. The immunological anatomy of the skin. Nat Rev Immunol., [S. l.], v. 19, p. 19-30, 2019.
MAYER, E. A., TILLISCH, K., GUPTA, A. Gut/brain axis and the microbiota. J Clin Invest., [S. l.], v. 125, n. 3, p. 926-938, 2015.
MERCADANTE, A. C. T. Efeito protetor da terapia combinada de indução de tolerância oral e tratamento probiótico do doador na Doença Enxerto contra Hospedeiro aguda. 2013. 153 f. Tese (Doutorado em Atenção ao Câncer – Ênfase em Imunologia) – Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, Rio de Janeiro, 2013.
PEREZ-LOPEZ, A. et al. Mucosal immunity to pathogenic intestinal bacteria. Nat Rev Immunol., [S. l.], v. 16, n. 3, p. 135-148, 2016.

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