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PRATICAR PARA APRENDER
Caro aluno, na seção anterior, você aprendeu as principais características do concurso de pessoas, bem como as teorias acerca da autoria e da punibilidade da participação. Ainda, obteve conhecimento sobre o concurso de pessoas nos crimes culposos e omissivos e sobre a participação de menor importância. Por fim, aprendeu sobre a cooperação dolosamente distinta e a (in)comunicabilidade das circunstâncias.
Na Unidade 4, apresentou-se a você uma situação em que Karina, completamente fora de si, proferiu ameaças e agressões verbais contra Tatiana, em razão do início de seu relacionamento amoroso com o seu ex-namorado, Túlio. Karina, inconformada com o fim do namoro e com o início do novo relacionamento do rapaz, pretende colocar um fim à vida de sua rival, caso ela não termine com Túlio.
Na situação-problema exposta na seção anterior, você teve que responder se houve concurso de pessoas entre Karina e Luan, o qual supostamente teria ministrado veneno para Karina colocar na bebida de Tatiana.
Inicialmente, cumpre destacar que há pluralidade de pessoas (Karina e Luan) e pluralidade de condutas (Luan ministrou o veneno, e Karina colocou no copo de Tatiana). Ainda, houve identidade de fato à medida que ambos almejaram a prática do art. 121 do CP, bem como as ações praticadas por Karina e Luan foram suficientes para causar o resultado. Ademais, está presente o liame subjetivo, já que Luan aderiu à conduta de Karina. Presentes os cinco requisitos, verifica-se que Karina é autora, pois teve o domínio do fato e uma conduta principal, e que Luan é partícipe, pois não teve o domínio do fato e sua conduta foi meramente secundária/acessória. Ele será punido em razão do ato praticado pelo autor ter sido típico e ilícito, como prevê a teoria da acessoriedade limitada. Assim, eles responderão em concurso de pessoas pela tentativa de homicídio, já que o crime não se consumou por circunstâncias alheias à vontade dos agentes.
Nesta seção, você aprenderá sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Imagine uma nova situação: Karina estava se sentindo cada vez pior pelas tentativas frustradas de colocar um fim à vida de Tatiana. Todas suas ações foram inaptas para atingir o resultado pretendido, o que a deixava ainda mais enlouquecida. Em razão disso, ela já estava sendo investigada pela polícia, e muitas pessoas do seu círculo social se distanciaram dela.
Certo dia, ciente de que iria até o fim em sua empreitada criminosa, Karina resolveu simular uma situação de violência e legítima defesa. Em unidade de desígnios com Luan, recém-contratado para o serviço de segurança de um shopping, Karina anotou os dias e os horários em que Tatiana frequentava o local. Completamente envolvido com a situação, Luan disse à sua amiga que ela deveria dirigir-se discretamente até Tatiana e, de repente, trombar-se com ela, gritando para todos que estaria sendo roubada. Neste momento, Luan sacaria a arma para desferir tiros contra a inimiga de Karina. Assim, ele agiria em nome da empresa de segurança, sob o suposto objetivo de proteger Karina numa situação de assalto.
Assim foi feito. No dia previamente ajustado, Karina e Tatiana se encontraram no shopping, tendo as duas se esbarrado na frente de Luan, momento em que o segurança teria disparado contra Tatiana, que morreu imediatamente. No entanto, a farsa foi descoberta pelos policiais, que logo notaram contradições entre os envolvidos e pelo histórico dos dois. Karina e Luan foram denunciados pelo crime de homicídio doloso qualificado. A família da vítima pediu para que a empresa de Luan também fosse acusada, já que ele teria agido em nome da pessoa jurídica no exercício da função de segurança.
Pessoa jurídica pode responder por crimes? De qual espécie? Quais são as condições para que uma pessoa coletiva responda pela prática de delitos? Para responder a essas indagações, você deverá compreender as principais características da responsabilidade penal da pessoa jurídica, bem como as espécies de crime a que estaria sujeita a praticar.
conceito-chave
Você constatou, na seção anterior, que existem crimes que podem ser praticados de forma solitária pelo agente ou em conjunto com outras pessoas. Neste último caso, tem-se o chamado concurso de pessoas, o qual, para a sua configuração, exige a presença de cinco requisitos: pluralidade de pessoas, pluralidade de condutas, identidade de fato, nexo causal e liame subjetivo.
Contudo, para além dos crimes praticados por pessoa física, existem também os crimes cometidos por pessoa jurídica. Isso seria possível? Uma empresa agiria com dolo no sentido de atingir um bem jurídico penal? Não seriam os seus representantes justamente os responsáveis por essas medidas? Não deveriam ser eles os condenados? E mais do que isso, caso uma sociedade seja condenada, como ela poderá cumprir uma pena?
Em Roma, prevalecia a compreensão segundo a qual a sociedade não pode ser responsabilizada criminalmente. Esse entendimento era simbolizado pelo aforismo societas delinquere non potest (PRADO, 2019).
Essas questões foram igualmente discutidas por Savigny e Feuerbach, citados por Bitencourt (2020), que diziam ser impossível responsabilizar uma pessoa jurídica pela prática de delitos, uma vez que faltariam duas condições para elas, quais sejam: capacidade natural de ação e capacidade de culpabilidade.
Avançando sobre o tema, já no final do século XIX, surgiu o entendimento de que a ficção criada em torno da pessoa jurídica também viabilizaria a sua punição penal. Para explicar didaticamente essa inversão, Santiago Mir Puig (MIR PUIG, apud BITERNCOURT, 2020, p. 456) utiliza uma metáfora biológica. Para o autor catalão, toda organização seria formada como um corpo, em que relacionaríamos cada membro como se fosse uma parte dos entes coletivos. Primeiro, compara-se a cabeça de um indivíduo como sendo o setor de gestão ou a própria presidência do grupo. Depois, o setor de comunicação da empresa equivaleria ao sistema nervoso. Por fim, os colaboradores/empregados/funcionários assumiriam o papel das células. Tão importante quanto essas áreas vitais é o funcionamento e a aparência do todo formado por cada célula. Apesar de o organismo ser responsável por funções distintas, Santiago Mir Puig conclui que é o corpo (o indivíduo) que sofrerá também com a punição, pelo que as pessoas jurídicas também deveriam sofrer com as consequências próprias e penais.
Todavia, o tema continua, ainda hoje, a ser polêmico. Parte da doutrina tende a defender a contradição dogmática entre pessoa jurídica e responsabilidade penal. Nesse sentido, podemos destacar, entre os opositores, o autor Bitencourt (2020). De acordo com o professor gaúcho, numa visão do direito penal sustentada tanto pelo causalismo quanto pelo finalismo e até mesmo pelo funcionalismo, é certo afirmar que há tantas contradições entre as premissas irrenunciáveis do direito penal contemporâneo e o esforço para adaptação de uma teoria que admita a pretensão punitiva contra as pessoas coletivas que, naturalmente, este não deveria ser o meio legalmente mais apropriado para a regulamentação e as punições decorrentes de atividades empresariais eventualmente ilícitas.
Mas, quais seriam esses paradoxos? Bitencourt (2020) acredita que existe uma impossibilidade inerente à própria natureza do ente coletivo de assumir a responsabilidade penal, eis que sua personalidade decorre de uma ficção legal criada artificialmente para facilitar a função de entidades que só assim exerceriam atividades patrimoniais. A empresa em si não teria vontade, já que, na verdade, ela expressa a vontade dos seus responsáveis. Esta peculiaridade de querer algo e agir no sentido de atingi-lo seria exclusiva dos seres humanos (BITENCOURT, 2020).
Assimile
Bitencourt (2018) afirma que equiparar a vontade daqueles que compõem a sociedade com a vontade em sentido estrito e, portanto, humana, é um equívoco incontornável, visto que as pessoas jurídicas só agem por meio das pessoas que as constituem.
Assim, a vontade de uma empresa, por exemplo, decorre da vontade dos seus sócios/quotistas, e a ação da PJ seria conduzida igualmente por eles ou por seus respectivos administradores. Em outras palavras, são as pessoas naturais que têm vontade e agem de forma ilícita, e não a empresa, que é completamente controlada por elas.
Qual é a consequência jurídica que decorre dessa compreensão? Em tese, os órgãos de controle social devem identificar e individualizar as condutas daqueles que efetivamente constituem e controlam a pessoa jurídica, pois são estas que agem com dolo e deveriam ser devidamente punidas. E como política criminal, não seria melhor punir com sanções as empresas, visando dissuadir eventuais condutas danosas? Poderíamos dizer que este argumento deveria ser justamente usado contra a criminalização de pessoas jurídicas, porque os delinquentes do colarinho branco poderiam aproveitar-se da responsabilidade penal das empresas, fazendo com que elas sejam geridas como “laranjas”, e assumiriam para si todos e quaisquer riscos provocados pelos próprios administradores. Assim, os gestores se esconderiam por trás dessa fachada jurídica, embora fossem efetivamente os responsáveis para desígnios delitivos. Isso serviria como uma forma de incentivo para a abertura e o fechamento de empresas à medida que fossem condenadas criminalmente, enquanto os sócios seriam eximidos de qualquer responsabilidade penal para assumirem outros entes e provocarem os mesmos crimes.
Esta não seria uma apologia à impunidade no contexto de grandes corporações, muito pelo contrário. É claro que é necessária uma punição às pessoas jurídicas que abusam ou fraudam a lei durante o exercício de suas atividades. Isso, contudo, não poderia ocorrer dentro da esfera penal, mas, sim, de outro modo. Bitencourt (2020) sugere que, para contribuir com o combate à prática de eventuais atos lesivos, sobretudo cometidos dentro do contexto econômico e empresarial, seria imprescindível criar um ramo do direito, ao qual ele próprio intitula como “direito de intervenção”, que compreenderia um corpo jurídico sancionatório intermediário entre direito penal e administrativo. Este estaria mais adequado aos princípios e às regras do Estado Democrático de Direito contemporâneo e serviria para dissuadir a prática de ilícitos com grandes proporções danosas (que, talvez, só empresas poderiam cometer) sem, contudo, romper com as garantias das ciências penais.
Seguindo esse entendimento, Bitencourt (2020) anuncia que existem, ao menos, quatro hipóteses de punição para as empresas, cujas sanções levam em consideração a natureza coletiva de sua formação, e não haveria qualquer vínculo com o direito penal. Vamos a elas:
• Responsabilidade civil.
• Medidas de segurança.
• Sanções administrativas.
• Medidas mistas (que se assemelham, embora não sejam exatamente responsabilização penal: dissolução da pessoa jurídica, corporate probation, imposição de um administrador externo, confisco e fechamento do estabelecimento).
Isso é tudo? Não, na verdade é 1/3 do que propusemos para essa discussão. Outra corrente jurídica defende exatamente o oposto. Pacelli e Callegari (2017) argumentam que o desenvolvimento tecnológico social impõe uma adaptação do direito penal às novas exigências de convivência entre as pessoas, que pode ser seriamente atingida por decisões e danos provenientes das atividades econômicas de grandes empresas e corporações. Os autores esclarecem que a potencialidade de danos decorrente de suas ações deve ser controlada por uma norma dissuasiva penal, isto é, que seja capaz de inibir (como nenhum outro ramo do direito) ações de risco que atinjam bens transindividuais. Como funcionaria isso? Rodríguez (apud PACELLI; CALLEGARI, 2017) anuncia alguns pressupostos para a responsabilização de pessoas coletivas na seara penal, observe:
• Risco proibido: durante o exercício da atividade empresária, esta deverá gerar um risco proibido e que seja capaz de ameaçar ou gerar dano a um bem jurídico.
• Dever jurídico do empresário: é necessário analisar todos os deveres inerentes aos responsáveis pela pessoa coletiva, nomeadamente: o controle e a vigilância em relação ao trabalho executado por subordinados, bem como a contratação de pessoas para análise dos riscos da empresa, entre outros.
• Resultado lesivo: somente poderá ser responsabilizada a empresa quando o ato lesivo decorre de ações/omissões relacionadas à sua função social.
• Previsibilidade objetiva: também será exigida a previsibilidade do dano para a responsabilização da empresa, ou seja, o resultado naturalístico que decorre de uma medida adotada ou omitida pela empresa deve ser objetivamente previsível, pelo que o dano poderia ter sido controlado ou evitado, segundo padrões comuns de comportamento.
Reflita
Os tipos penais se estruturam a partir de condutas, e a pessoa jurídica realiza atividades por interposta pessoa. Daí, fica a pergunta: como proceder à adequação típica e à responsabilidade por atos de terceiros (os prepostos)?
Rebatendo os argumentos aventados por Bitencourt, Pacelli e Callegari (2017) admitem a possibilidade de aplicação do princípio da culpabilidade sobre as empresas, contudo adaptando-se à natureza da pessoa jurídica, porque a culpabilidade continuaria a ser atribuída somente ao homem como único sujeito capaz de compreender o caráter ilícito (e tudo aquilo que já foi dito antes, como guiar suas condutas segundo suas próprias vontades, etc.).
Ultrapassado esse primeiro obstáculo, a pessoa coletiva deve igualmente ser classificada entre dois grupos: imputáveis ou inimputáveis. Embora em uma nova nomenclatura seria o ideal, isso serviria para definir a capacidade penal das empresas. Somente aqueles entes altamente organizados e complexos poderiam tornar-se sujeitos ativos de um delito. Do mesmo modo, a culpabilidade não se ligaria ao fato em si, mas à forma como a empresa é administrada intencionalmente, ou seja, como que determinada cultura prevalece nas esferas de ação e decisão da empresa altamente organizada.
A última das barreiras enfrentadas por Pacelli e Callegari (2017) refere-se ao dolo e à culpa. No que concerne ao elemento volitivo, tem-se que a vontade e a consciência serão preenchidas concretamente por meio do conhecimento difundido na organização social sobre os riscos que a atividade empresária representará aos bens jurídicos tutelados penalmente. A culpa, por outro lado, se configuraria como a “(...) ausência evitável de conhecimento do risco gerado pelo desempenho da atividade empresarial” (PACELLI; CALLEGARI, 2017, p. 220).
Segundo Diez (2015), a questão do dolo empresarial resolveu-se da seguinte forma: a empresa funcionaria como uma organização, cujo interesse não seria a soma, mas o resultado do conhecimento individual de cada um dos membros, que, uma vez ou outra, pode ser, inclusive, divergente a de cada um individualmente. Com isso, forma-se a vontade da empresa, que é diferente dos demais. Conclui o autor afirmando que “dolo no Direito Penal empresarial é entendido como conhecimento organizativo do concreto risco empresarial – nos delitos de perigo – que se realiza no resultado típico – nos delitos de resultado” (DIEZ, 2015, p. 54).
Assimile
Numa organização complexa como as sociedades atuais, torna-se um trabalho razoavelmente difícil imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta diante da descentralização e distribuição de tarefas e especialização de áreas de atuação.
Por fim, até mesmo com relação à pena, não existiriam tantos problemas para a sua execução pelas empresas que venham a ser condenadas por crimes. De acordo com Pacelli e Callegari (2017), a despeito de o direito penal estar relacionado, num período recente, com as sanções privativas de liberdade, tal sanção não é e nem poderia ser uma conditio sine qua non deste ramo jurídico. É emblemática, mas não se pode resumir o direito penal com um suposto direito prisional. Muito pelo contrário, tem-se que a tendência atual é justamente de descarceramento quando observamos, por exemplo, o rol de penas restritivas de direito. Percebe-se claramente uma tendência de atingir o patrimônio do condenado ou impor prestações de serviços que poderiam ser transferidas para as pessoas jurídicas.
Diversos tipos de pena podem ser assumidos por pessoas jurídicas, desde que, claro, não representem violações a direitos de terceiros, como de empregados e de prestadores de serviço. Tampouco, deseja-se que tal sanção se transforme em algo meramente simbólico ou incapaz de atingir às finalidades preventivas (geral e especial) e retributivas de toda e qualquer pena.
Assimile
Enquanto uma condenação acima da capacidade da empresa pode provocar o descumprimento das obrigações com um funcionário, uma pena demasiadamente branda representará apenas mais um custo no orçamento de uma grande sociedade.
Seguindo o mesmo entendimento, Diez (2015) afirma que, considerando a função fundamental da pena que é, para ele, o reforço comunicativo de uma proibição sobre um ato danoso, deve-se tê-la como o suficiente para impedir a convivência social. A responsabilização penal da pessoa jurídica cumpre com esse fim ao impor uma pena que restabelecerá a comunicação de vigência da norma, prevenindo que atos semelhantes continuem a impedir o desenvolvimento social.
Como terceira e última corrente, podemos suscitar o antigo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual a pessoa jurídica não tem possibilidade real de praticar crimes, embora pudesse ser penalmente responsabilizada por atos praticados contra o meio ambiente. Nesse sentido, para os ministros do STJ, a acusação por crime ambiental que envolve pessoa jurídica deveria necessariamente incluir a pessoa natural que atuava em nome daquela corporação, uma vez que são as pessoas, durante o exercício funcional ou fora dele, que atuam com elemento subjetivo próprio.
Toda essa contextualização é importante e necessária para formamos um pensamento crítico e realista sobre o instituto. Apesar disso e da relevância que a doutrina exerce sobre a interpretação dos textos normativos, não podemos nos esquecer que a fonte principal do direito brasileiro continua sendo a Constituição. A nossa Carta Magna fez uma opção, e assim previu, no §5º do art. 173 e no §3º do art. 225, a possibilidade de incriminação da pessoa jurídica pela prática de atos típicos, respectivamente, contra, em primeiro lugar, a economia popular e a ordem econômica/ financeira e o meio ambiente.
Art. 173.
§5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
Art. 225.
§3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independente- mente da obrigação de reparar os danos causados.
Atenção
Apesar da previsão do art. 173 da Carta Magna, esse dispositivo nunca foi regulamentado pelo legislador infraconstitucional, pelo que a possibilidade constitucional não implica a incriminação nesta última hipótese.
Diferentemente do que ocorreu com o art. 173 da CF/88, em 1998, o Congresso Nacional promulgou a Lei nº 9.605, que criminalizou condutas que ameaçam ou lesam o meio ambiente, incorporando, inclusive, a autorização constitucional quanto à possibilidade de incriminar pessoas jurídicas responsáveis pela violação desse bem jurídico. Nessa mesma oportunidade, o legislador ainda fez um importante acréscimo quando adotou o sistema da dupla imputação, por meio da qual se estabeleceu a independência entre a responsabilidade de pessoas jurídicas e de pessoas físicas. Assim, preceitua o art. 3º da Lei de Crimes Ambientais: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade” (BRASIL, 1998, [s. p.]).
E quanto ao concurso de pessoas num crime ambiental envolvendo tanto a pessoa jurídica como a natural? A doutrina costumava defender a hipótese de obrigatoriedade da dupla incriminação, obrigando-se a um quase litisconsórcio passivo necessário na ação penal, conforme o próprio entendimento já exposto do STJ.
Pesquise mais
Curioso para entender melhor esse antigo entendimento do Superior Tribunal de Justiça? Pesquise mais no próprio site do STJ, no qual consta uma vasta jurisprudência a respeito do tema.
Em virtude da forma como defendiam os ministros da Corte Superior, seria consagrada uma vez mais a responsabilidade objetiva no direito penal brasileiro, o que é proibido pela Constituição. Além disso, Pacelli e Callegari (2017) argumentam que o concurso de pessoas necessário violava também o princípio do ne bis in idem pela absurda imposição de duas condenações, em razão de condenarmos duas pessoas por uma única conduta que originou o dano em algumas hipóteses. Veja o embaraço jurídico com a tese defendida: uma conduta gerava duas condenações contra duas pessoas distintas.
Reflita
Qual requisito imposto para o reconhecimento do concurso de pessoas que é violado com o entendimento defendido pelo STJ?
Fechando a questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, embora seja possível a dupla imputação, essa não pode ser exigida como se fosse um litisconsórcio necessário. Isso é o que extraímos do julgamento concretizado no RE 548181/PR.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art.
225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. BRASIL, STF - RE: 548181 PR, Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 06/08/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014
Exemplificando
Não entendeu a discussão? Veja como poderia ocorrer essa hipótese num caso real. Suponhamos que uma empresa petrolífera, por exemplo, a Petroveracruz, com sede no Rio de Janeiro, pratique um crime ambiental no Espírito Santo enquanto exerce sua atividade típica de refinamento do petróleo. O presidente da empresa, que é notoriamente complexa, organizada e descentralizada, deve responder por este crime ambiental em concurso necessário com a pessoa jurídica? De quem veio a ordem, o descuido ou a decisão que provocou o acidente?
Num caso semelhante julgado pelo Supremo Tribunal Federal, chegou-se à conclusão de que seria impossível imputar contra o presidente ou qualquer outra pessoa, em determinadas circunstâncias concretas, a responsabilidade pelos fatos que originaram um delito ambiental, em razão da descentralização e da complexidade de determinadas decisões e ações a que grandes empresas estão submetidas. Assim, quando impossível apurar a responsabilidade de um gerente, diretor ou presidente, conclui-se que a responsabilidade será arcada pelo ente coletivo, já que não podemos presumir a responsabilidade apenas por fazerem parte da empresa, sob pena de violar o princípio do estado de inocência.
Por fim, exploraremos as ideias de Paulo César Busato (2018), prestigiado autor paranaense, que também defende a possibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Primeiramente, ele afirma que as objeções ao instituto costumam ser de ordem criminológicas, político-criminais ou dogmáticas (referentes à ciência do direito). Os óbices criminológicos dizem respeito à expansão do sistema penal que a responsabilidade penal da pessoa jurídica representaria, o que não se compatibilizaria com um direito penal de intervenção mínima. Contudo, o autor afirma que o princípio da intervenção mínima apregoa que o direito penal somente deve tutelar os mais importantes bens jurídicos contra as ofensas intoleráveis e, na atualidade, boa parte das mais pesadas lesões a interesses coletivos são cometidas justamente por pessoas jurídicas. Ademais, afirma haver uma certa incongruência no fato de que aqueles que são contrários ao instituto que estamos estudando nesta seção normalmente são adeptos de uma criminologia crítica de matriz marxista, e a imunidade criminal da pessoa jurídica é uma das mais importantes imposições capitalistas geradas pelas teses contratualistas no Iluminismo.
O óbice político-criminal é referente ao fato de que a pessoa jurídica não pode ser presa e sua natureza é incompatível com as penas criminais, sendo mais adequado sancionar suas condutas através de institutos civis ou administrativos. Contra isto, Busato (2018) argumenta que as sanções contra as pessoas jurídicas podem possuir gravidade, uma vez que é possível que a sociedade empresária seja extinta, e seu patrimônio, adjudicado. Assim, chamar de civil ou de administrativa uma sanção que possui significativa gravidade parece ser verdadeira fraude de etiquetas, pois o direito penal é o legítimo sistema jurídico que estabelece uma estrutura de garantias contra gravosas restrições de direito.
Por fim, a terceira objeção parece a mais intransponível: a estrutura dogmática da teoria do delito não parece compatível com a responsabilidade penal da pessoa jurídica, uma vez que a culpabilidade pressupõe atributos humanos, tal como a imputabilidade e a potencial consciência da ilicitude. Busato (2018) admite que este obstáculo não pode ser superado, pois não concorda com a construção de um novo conceito de culpabilidade para as pessoas jurídicas, afinal, mudar a estrutura da ciência do direito devido às características do autor do crime enfraqueceria tal ciência. Todavia, o sistema punitivo brasileiro (e estrangeiro) possui vários exemplos de sanções penais que prescindem da culpabilidade: as medidas socioeducativas para os menores de 18 anos e as medidas de segurança para os que sofrem de transtornos mentais são os exemplos mais notáveis. Assim, a sanção aplicada à pessoa jurídica deverá ter as mesmas características destes institutos e ser condicionada às garantias construídas pela ciência do direito penal.
Faça a valer a pena
Questão 1
No Brasil, a obscura previsão do art. 225, § 3º, da Constituição Federal relativamente ao meio ambiente, tem levado alguns penalistas a sustentarem equivocadamente, que a Carta Magna consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica. No entanto, a responsabilidade penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual.
Analise as assertivas a seguir:
I. A doutrina brasileira é unânime em rechaçar a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
II. A responsabilidade penal da pessoa jurídica encontra obstáculos criminológicos, político-criminais e jurídicos, segundo parte da doutrina.
III. A responsabilidade penal da pessoa jurídica é expressamente permitida pela Constituição Federal em crimes contra o meio ambiente, contra o sistema financeiro e contra a ordem tributária.
Assinale a alternativa correta.
Correto!
A responsabilidade penal da pessoa jurídica encontra óbices criminológicos e político-criminais, uma vez que é postura contrária a um direito penal mínimo e encontra obstáculos na ciência do direito penal, pois o conceito de culpabilidade não é adequado à pessoa jurídica. Porém, parte da doutrina afirma que o instituto é perfeitamente viável, mesmo porque a Constituição o permite para os crimes contra a ordem econômica e financeira e para os delitos contra o meio ambiente. Não há permissão constitucional, contudo, para os crimes contra a ordem tributária.
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Questão 2
A questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica constitui ainda hoje uma temática bastante controvertida e que tem despertado a atenção da doutrina penal em todo o mundo. Isso principalmente devido ao papel cada vez mais importante desempenhado pela pessoa jurídica na sociedade moderna, o que a tem vinculado de modo decisivo ao fenômeno da denominada criminalidade econômica latu sensu.
Sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, assinale a alternativa correta.
Correto!
A responsabilidade penal da pessoa jurídica é mencionada duas vezes pela Constituição Federal. Primeiramente, no § 3º do art. 225, o qual permite que a pessoa jurídica seja responsabilizada em crimes ambientais. Em um segundo momento, no § 5º do art. 173, que se refere às infrações contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Contudo, apenas a Lei dos Crimes Ambientais regulamentou esta punição.
b. A Constituição admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes contra o patrimônio.
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Questão 3
“É fato inarredável que, cada vez mais, fatos gravíssimos de intensa repercussão social têm envolvido atividades de pessoas jurídicas. Porém, classicamente, a doutrina costuma negar a possibilidade de responsabilizá-las criminalmente.” (BUSATO, 2018, p. 704).
Quanto aos argumentos do jurista Busato (2018) no que tange à responsabilidade penal da pessoa jurídica, analise as assertivas a seguir:
I. A responsabilidade penal da pessoa jurídica é necessária, tendo em vista o crescente número de ilícitos penais praticados através de empresas.
II. Afirmar que a responsabilidade civil e administrativa das pessoas jurídicas já é suficiente para sancionar os ilícitos praticados pelos entes ficcionais é adotar uma “fraude de etiquetas”, ou seja, trata-se de uma responsabilidade penal com a falsa roupagem de outros ramos do direito.
III. É perfeitamente possível adaptar a teoria normativa pura da culpabilidade à natureza da pessoa jurídica, basta que os institutos que se referem especificamente à pessoa natural (como a imputabilidade e a potencial consciência da ilicitude) sejam ignorados.
Assinale a alternativa correta.
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Correto!
Para Busato (2018), os óbices à responsabilidade penal da pessoa jurídica são contornáveis, tendo em vista que é necessário que um sistema de garantias regule as sanções cominadas às condutas praticadas sobre o manto da pessoa jurídica, sob pena de se adotar uma fraude de etiquetas ao chamar estas responsabilidades de civis ou administrativas. Contudo, a culpabilidade, para este autor, não é compatível à pessoa jurídica, porém as sanções destinadas a esta ainda poderiam ter natureza semelhante às medidas de segurança ou socioeducativas, pois estas não dependem da culpabilidade.
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Referências
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BRANDÃO, C. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D´Plácido, 2019.
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BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em: https://bit.ly/3AJx59a. Acesso em: 8 jul. 2021.
BUSATO, P. C. Direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
CUNHA, R. S. Manual de direito penal: parte geral. 8. ed. Salvador, BA: Juspodivm, 2020.
DÍEZ, C. G.-J. A responsabilidade penal da pessoa jurídica: teoria do crime para pessoas jurídicas. São Paulo: Atlas, 2015.
GRECO, R. Curso de direito penal: parte geral. 20. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2018.
PACELLI, E.; CALLEGARI, A. Manual de Direito Penal - Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
PRADO, L. R. Tratado de direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
SANTOS, J. C. dos. Direito penal. 7. ed. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2017.
ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.